Análise do filme A VÊNUS NEGRA
O filme tem como protagonista a sul-africana Saartjie Baartman. Mostrando-se a maior parte do tempo em silencio e com olhar triste, a "Vênus hotentote" (assim apelidada devido aos contornos do corpo avantajado) demonstra um mistério profundo e uma face depressiva. Alvo do olhar europeu e sua mentalidade racista do século XIX, Saartjie caminha por diversas situações em que o seu corpo e o seu espirito são completamente explorados.
Inicialmente atraída
pela promessa de atuar como artista pela Europa, assim como fazia na África,
Saartjie se vê num contexto totalmente diferente daquele que idealizara. Hendrick
Cezar, que a atraiu àquela situação, carrega no seu discurso uma mensagem por
vezes persuasiva que a faz suportar uma série de situações desagradáveis e
invasivas, principalmente quando o seu corpo é exposto ao toque daqueles que a
encaravam enquanto um ser primitivo que ocupava uma posição de comparações
evolutivas entre o homem, o macaco e o ancestral comum.
A “Vênus Hotentote” é
alvo do olhar daquele público ávido por curiosidades, a espetacularização de
seu corpo e da sua própria existência a torna um sucesso para publico. Além
destes, os cientistas a encaram enquanto um exemplar curioso que aparenta estar
próxima evolutivamente dos orangotangos. Estudam o seu corpo, medem suas
formas, a mandíbula, os seios, o crânio e todos os demais detalhes, incluindo o
seu intimo.
Saartjie se vê nas mãos
de uma Europa do século XIX sustentada nas bases cientificas que tentavam
compreender a existência de níveis evolutivos diferenciados da espécie humana.
Essa mesma Europa que tem no seio de sua própria existência a referência do
humano evoluído, o mais puro caucasiano. A antropologia evolucionista, que
parte da suposição da existência de uma história comum a toda humanidade,
baseia-se em uma linha de pensamento que engloba três estágios: a selvageria, a
barbárie e a civilização, como afirma Morgan
pode-se afirmar agora, com base
em convincente evidência, que a selvageria precedeu a barbárie em todas as
tribos da humanidade, assim como se sabe que a barbárie precedeu a civilização.
A história da raça humana é uma só – na fonte, na experiência, no progresso. (MORGAN,
apud OLIVEIRA, 2004, p. 44)
A exposição do corpo sob a ideia de considerar
as organizações não-européias enquanto fósseis vivos baseia-se num pressuposto
de que o estudo da embriologia do pensamento e das instituições humanas seria o
meio de entender uma condição primitiva
da humanidade a partir do estudo da selvageria hoje, pois os selvagens
hoje são primitivos em comparação à cultura europeia, mas não em relação ao
homem primitivo original.
Não limitado à própria
existência “daquele ser”, uma abordagem que a todo momento vem a tona é a
necessidade de conhecer o intimo, a genitália. Nestes momentos é possível ver
com mais clareza a reação de Saartjie, tamanho incômodo. Ela que por muitas
vezes é ora persuadida ora agredida por Hendrick, e silencia, apreciando cada
vez mais a bebida (única sensação de alivio a qual experimenta).
Gradativamente, sua situação vai ficando mais critica, na França seus órgãos
genitais são expostos ao olhar de homens e mulheres, que a erotiza, despertando
aquilo que há de animal no homem “civilizado”. Apalpada pelo público, que
verbaliza estranhamento e atração, os últimos dias de Saartjie é na
prostituição e no alcoolismo.
O titulo do filme chama
a atenção. A “Vênus” é a deusa do amor e do erotismo, no entanto Saartjie foi
usada com base na exotização de seu corpo, suas características avantajadas,
diferente do comum naquela sociedade, colocou o seu corpo num lugar de
interesse dos homens europeus que queriam explorar o máximo dessa “estranheza”.
A Vênus, que também faz referência à beleza, soa destoante à abordagem mostrada
no filme. Ao contrario disso, Saartjie é exposta ao olhar coletivo na França e
adjetivada como “terrível”, “estranha”, “horrível”, mas ainda assim
despertadora dos impulsos sexuais masculinos.
Sobre essa exotização
do corpo, Paula Libence em seu blog faz uma comparação a uma realidade atual e
próxima.
Eu diria que diversas Saartjies
estão presentes no nosso cotidiano, pois é possível notar que as passistas de
escola de samba, por exemplo, e guardadas as devidas proporções, são
apresentadas com a mesma finalidade que Saartjie era apresentada no século XIX:
para divertir o público e levá-lo ao delírio ao apreciar o aspecto selvagem da
mulher que assusta o público ao mesmo tempo que deixa todos os presentes
extasiados e loucos de desejo. A ênfase à passista da escola de samba, aqui,
não é por acaso, pois esse é o espectro de mulher brasileira vendida pelas
agências de turismo e entretenimento de todo o mundo, inclusive brasileiras. A
mulher fácil, boa de sexo, fervorosa na cama. A mulata do bundão, gostosona,
que tem e faz algo a mais no sexo, é caliente, e está sempre disposta a
realizar todos os seus impulsos mais animalescos e instintos mais sacanas.
(LIBENCE, 2013)
Essa abordagem abre
caminhos para diversas discussões e outras observações, no entanto, sem querer
perder o foco da analise, adentremos a argumentação acerca do corpo enquanto
espaço de disputa e poder. Nestes termos, não há como não pensar na posse. A
disputa é pela posse, e a essa posse confere o poder. O corpo de Saartjie, após
sua morte, teve órgãos extraídos e levados à exposição no Museu do Homem, em
Paris, onde ficou exposto até o ano de 1974. Esse corpo, objeto de estudo para
a ciência, e de curiosidade para o publico em geral, ficou sob posse do governo
francês até o momento em que a África do Sul solicita sua restituição, em 1994,
oito anos foram necessários até que esse corpo finalmente pôde ser sepultado em
sua terra natal.
É no momento em que
passa a representar uma realidade especifica que o objeto passa a ser olhado
enquanto patrimônio. Saartjie carrega em sua história várias histórias. O filme
chega a causar incomodo em quem o assiste, especialmente por haver consciência
de suas bases na realidade. É todo o discurso que está subescrito na narrativa
que a torna um patrimônio para a humanidade. Discurso esse que demonstra o
pensamento colonialista, racista e machista em que a ciência se aportou. É
relevante observar que essa realidade se reinventa, os discursos mudam, mas
continuam a persuadir multidões. O exótico ainda é alvo do interesse coletivo e
numa sociedade capitalista o lucro rege as relações. O atual turismo étnico
pode ser observado sob essa ótica. O interesse em conhecer o “exótico”, ainda
que sob o discurso da valorização da cultura local. Vê-se a posse sobre
elementos que compõem determinada organização social (poder), o discurso que a
torna atrativa e, muitas vezes, o lucro que a estimula e a ameaça.
É possível concluir que
a essência daquele olhar europeu sobre Saartjie está presente na realidade
atual, de forma reinventada.
BIBLIOGRAFIA:
LEBENCE, Paula. A Vênus Negra, a "mulata exportação" e o corpo da mulher negra na sociedade espetáculo. Publicado em 11/01/2013. Disponível em https://escrevivencia.wordpress.com/2013/01/11/a-venus-negra-a-mulata-exportacao-e-o-corpo-da-mulher-negra-na-sociedade-do-espetaculo/
LEBENCE, Paula. A Vênus Negra, a "mulata exportação" e o corpo da mulher negra na sociedade espetáculo. Publicado em 11/01/2013. Disponível em https://escrevivencia.wordpress.com/2013/01/11/a-venus-negra-a-mulata-exportacao-e-o-corpo-da-mulher-negra-na-sociedade-do-espetaculo/
OLIVEIRA, Marcel Luis de Moraes. FRANZ BOAS: criticas aos métodos da antropologia evolucionista, reação às teorias racialistas e objetivos da pesquisa antropológica. Disponível em http://www.consciencia.org/franz-boas-pesquisa-antropologica
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